quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sobre literatura


Finalmente chegou a época dos exames vestibulares, e os alunos ficam sempre à espera das dicas de última hora, aquelas que podem salvar a alma de muitos ou mesmo acalmar as ansiedades criadas ao longo do ano letivo. Como professora de Literatura, vou fazer aqui a minha parte e espero ajudar, especialmente aos alunos que irão enfrentar  a FUVEST e UNICAMP.

A primeira coisa é ter lido a lista de livros. Se o aluno não teve tempo de ler ou é daqueles que não amam esse tipo de atividade, apesar de terem consciência da necessidade ou validade de tal, ler ao menos análises e não somente resumos é prioridade. Afinal, a Literatura não se restringe apenas a histórias que se contam, mas ao modo como a linguagem se constrói no texto literário e nas interações críticas a respeito de determinada realidade que o autor consegue alcançar.

Dito isso, começo pelas obras escolhidas no âmbito da escola Romântica na Literatura. Em Til, de José de Alencar, há duas considerações a fazer: o regionalismo, de um lado, que retrata o interior de São Paulo, os costumes das fazendas (como a festa Junina); e a idealização romântica, pautada em valores burgueses, o que explica o final dado à personagem Berta (filha bastarda, por isso sem direitos) e a visão maniqueísta (bemXmal). Em Memórias de um sargento de milícias, a proposta é parodiar os conceitos românticos ao trazer à tona o humor, uma linguagem coloquial e a apresentação do mundo de pessoas mais pobres. Outra coisa interessante nesse livro é a construção do anti-herói Leonardinho, que foge aos padrões maniqueístas românticos com o surgimento de um personagem que relativiza suas ações e só se preocupa em viver sem compromisso no mundo da malandragem. Fecha-se o ciclo romântico com Viagens na minha terra, de Almeida Garret, outro livro peculiar porque, a princípio, o autor diz não ser romântico, erigindo uma obra que não se enquadra na forma de romance, em virtude da  hibridez que lhe é característica (ora é relato de viagem, ora é texto filosófico, ora nasce uma narrativa, ora vira memórias ou crítica). Nesse livro, Garret avançou como nacionalista romântico, instaurando uma defesa pelo liberalismo, marcado por uma vertente crítica. Até mesmo na narrativa dada na segunda metade da obra, o autor metaforiza em Carlos o liberalismo em Portugal e dá sua cartada última – a nação não será revitalizada por ele, será abandonada, como Carlos faz com Joaninha (representação de Portugal), o interesse será tão somente pelo dinheiro, daí Carlos escolher ser barão (o novo mal do país).

Em outra frente, há os livros da escola realista. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, faz a linha de crítica ao homem medíocre e hipócrita. A história de Cubas é a análise do espírito humano impregnado pelos interesses individuais, é o desmascaramento da burguesia e de todos os valores que a elevavam à época do romantismo. Cubas olha o mundo ao redor e a si mesmo como olhos novos de defunto, totalmente despreocupado com o olhar da opinião e, ao mesmo tempo, falseando desinteresse e desdém pelos fracassos da própria vida. Já em O cortiço, de Aluísio de Azevedo, o Naturalismo é pintado em todas as cores encarnadas e agressivas. O homem reage o tempo todo como animal que é, marcado pelos instintos, o objetivo de cada personagem é sempre inglório: ou se quer o sexo, como a transformação de Jerônimo, seduzido pela luxuriante Rita Baiana; ou se quer riqueza, sem escrúpulos de qualquer natureza, como o João Romão, que é o retrato fiel do homem seduzido pela ambição. A miséria do homem vincula-se tanto à pobreza, com as descrições do modo de vida dos moradores do cortiço, quanto à riqueza, retratada no sobrado do Miranda. Também se encerra o grupo realista com outro escritor português, Eça de Queirós, e a obra escolhida é A cidade e as serras. O livro tem como proposta comparar o progresso urbano de cidades como Paris ao atraso rural em que se encontrava Portugal. Na visão de um narrador português, José Fernandes, a vida de Jacinto na cidade não proporcionava exatamente a felicidade, havia na cidade a futilidade, o interesse, a hipocrisia, a mediocridade. O que para Machado de Assis existe no âmago do homem, há para Eça na burguesia urbana. Em busca de valorizar sua terra, também em uma linha nacionalista parecida com Garret, Eça de Queirós aponta para a felicidade que só Portugal pode oferecer ao povo, dando-lhe motivação de vida e transformando a ociosidade urbana em produtividade em todos os sentidos.

O último grupo de livros pertence ao segundo período modernista (1930-45). Dois romances foram escolhidos, ambos pertencentes ao movimento do Neorrealismo regionalista, em que os escritores se preocupam com a denúncia das mazelas sociais de determinadas regiões do país. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é óbvia a temática da seca nordestina e a vida errática da família de Fabiano, dos retirantes, que sofrem, além da hostilidade geográfica, as opressões da exploração do trabalho, na relação de Fabiano com o fazendeiro, e o abandono governamental, expressos pelo soldado amarelo e pelo fiscal da prefeitura. Todos esses fatores atuam de modo a obrigar a família de Fabiano a viver como animais, não regidos pelo instinto como se viu em O cortiço, mas sim marcados pela busca incessante da sobrevivência e pela incapacidade de comunicação. Em Capitães da areia, de Jorge Amado, a temática é urbana: os menores abandonados da cidade de Salvador. O autor consegue aqui analisar de tal modo a realidade que fica explícita a causa do problema: a forma como a sociedade se organiza e de como resolve os problemas que ela mesma cria. Tanto Graciliano Ramos como Jorge Amado utilizam as teorias socialistas como base do discurso que as obras assumem. No primeiro, marca-se a impotência do trabalhador diante do poder capitalista; no segundo, há um vislumbre da possibilidade de luta proletária, da organização por meio da politização como solução social.

Ainda nesse período, mas como poesia, destaca-se a obra Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Em proporção diferenciada, surge o ideal socialista na descoberta de um mundo que se deteriora em razão da Segunda Guerra Mundial, marco da decadência capitalista segundo o poeta, e da Ditadura que dominava o Brasil à época de Getúlio Vargas. O livro contempla o momento em que o poeta abandona aquela poesia do cotidiano, toma consciência da nova realidade e preocupa-se em dar um novo papel ao trabalho poético: é preciso usar as palavras para denunciar, para que as pessoas acordem da inércia política, é preciso lutar. E a poesia drummondiana renasce nessa obra com nova postura. Há poemas metalinguísticos que questionam o objetivo poético nesse momento de gravidade no Brasil e no mundo, como também existem os poemas que abordam claramente os acontecimentos desse período, e, por fim, os poemas que abordam o próprio poeta enquanto vida, origem e amigos.

É evidente que as obras foram escolhidas justamente por terem relações entre si, tanto analógicas como distintas. Ao aluno é necessário tranquilidade, domínio emocional acima de tudo, para poder compreender os enunciados das questões e encontrar a resposta certa. Agora é ser fera e mostrar o quanto você se preparou. Bom vestibular!

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quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Sobre literatura


Finalmente chegou a época dos exames vestibulares, e os alunos ficam sempre à espera das dicas de última hora, aquelas que podem salvar a alma de muitos ou mesmo acalmar as ansiedades criadas ao longo do ano letivo. Como professora de Literatura, vou fazer aqui a minha parte e espero ajudar, especialmente aos alunos que irão enfrentar  a FUVEST e UNICAMP.

A primeira coisa é ter lido a lista de livros. Se o aluno não teve tempo de ler ou é daqueles que não amam esse tipo de atividade, apesar de terem consciência da necessidade ou validade de tal, ler ao menos análises e não somente resumos é prioridade. Afinal, a Literatura não se restringe apenas a histórias que se contam, mas ao modo como a linguagem se constrói no texto literário e nas interações críticas a respeito de determinada realidade que o autor consegue alcançar.

Dito isso, começo pelas obras escolhidas no âmbito da escola Romântica na Literatura. Em Til, de José de Alencar, há duas considerações a fazer: o regionalismo, de um lado, que retrata o interior de São Paulo, os costumes das fazendas (como a festa Junina); e a idealização romântica, pautada em valores burgueses, o que explica o final dado à personagem Berta (filha bastarda, por isso sem direitos) e a visão maniqueísta (bemXmal). Em Memórias de um sargento de milícias, a proposta é parodiar os conceitos românticos ao trazer à tona o humor, uma linguagem coloquial e a apresentação do mundo de pessoas mais pobres. Outra coisa interessante nesse livro é a construção do anti-herói Leonardinho, que foge aos padrões maniqueístas românticos com o surgimento de um personagem que relativiza suas ações e só se preocupa em viver sem compromisso no mundo da malandragem. Fecha-se o ciclo romântico com Viagens na minha terra, de Almeida Garret, outro livro peculiar porque, a princípio, o autor diz não ser romântico, erigindo uma obra que não se enquadra na forma de romance, em virtude da  hibridez que lhe é característica (ora é relato de viagem, ora é texto filosófico, ora nasce uma narrativa, ora vira memórias ou crítica). Nesse livro, Garret avançou como nacionalista romântico, instaurando uma defesa pelo liberalismo, marcado por uma vertente crítica. Até mesmo na narrativa dada na segunda metade da obra, o autor metaforiza em Carlos o liberalismo em Portugal e dá sua cartada última – a nação não será revitalizada por ele, será abandonada, como Carlos faz com Joaninha (representação de Portugal), o interesse será tão somente pelo dinheiro, daí Carlos escolher ser barão (o novo mal do país).

Em outra frente, há os livros da escola realista. Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, faz a linha de crítica ao homem medíocre e hipócrita. A história de Cubas é a análise do espírito humano impregnado pelos interesses individuais, é o desmascaramento da burguesia e de todos os valores que a elevavam à época do romantismo. Cubas olha o mundo ao redor e a si mesmo como olhos novos de defunto, totalmente despreocupado com o olhar da opinião e, ao mesmo tempo, falseando desinteresse e desdém pelos fracassos da própria vida. Já em O cortiço, de Aluísio de Azevedo, o Naturalismo é pintado em todas as cores encarnadas e agressivas. O homem reage o tempo todo como animal que é, marcado pelos instintos, o objetivo de cada personagem é sempre inglório: ou se quer o sexo, como a transformação de Jerônimo, seduzido pela luxuriante Rita Baiana; ou se quer riqueza, sem escrúpulos de qualquer natureza, como o João Romão, que é o retrato fiel do homem seduzido pela ambição. A miséria do homem vincula-se tanto à pobreza, com as descrições do modo de vida dos moradores do cortiço, quanto à riqueza, retratada no sobrado do Miranda. Também se encerra o grupo realista com outro escritor português, Eça de Queirós, e a obra escolhida é A cidade e as serras. O livro tem como proposta comparar o progresso urbano de cidades como Paris ao atraso rural em que se encontrava Portugal. Na visão de um narrador português, José Fernandes, a vida de Jacinto na cidade não proporcionava exatamente a felicidade, havia na cidade a futilidade, o interesse, a hipocrisia, a mediocridade. O que para Machado de Assis existe no âmago do homem, há para Eça na burguesia urbana. Em busca de valorizar sua terra, também em uma linha nacionalista parecida com Garret, Eça de Queirós aponta para a felicidade que só Portugal pode oferecer ao povo, dando-lhe motivação de vida e transformando a ociosidade urbana em produtividade em todos os sentidos.

O último grupo de livros pertence ao segundo período modernista (1930-45). Dois romances foram escolhidos, ambos pertencentes ao movimento do Neorrealismo regionalista, em que os escritores se preocupam com a denúncia das mazelas sociais de determinadas regiões do país. Em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é óbvia a temática da seca nordestina e a vida errática da família de Fabiano, dos retirantes, que sofrem, além da hostilidade geográfica, as opressões da exploração do trabalho, na relação de Fabiano com o fazendeiro, e o abandono governamental, expressos pelo soldado amarelo e pelo fiscal da prefeitura. Todos esses fatores atuam de modo a obrigar a família de Fabiano a viver como animais, não regidos pelo instinto como se viu em O cortiço, mas sim marcados pela busca incessante da sobrevivência e pela incapacidade de comunicação. Em Capitães da areia, de Jorge Amado, a temática é urbana: os menores abandonados da cidade de Salvador. O autor consegue aqui analisar de tal modo a realidade que fica explícita a causa do problema: a forma como a sociedade se organiza e de como resolve os problemas que ela mesma cria. Tanto Graciliano Ramos como Jorge Amado utilizam as teorias socialistas como base do discurso que as obras assumem. No primeiro, marca-se a impotência do trabalhador diante do poder capitalista; no segundo, há um vislumbre da possibilidade de luta proletária, da organização por meio da politização como solução social.

Ainda nesse período, mas como poesia, destaca-se a obra Sentimento do Mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Em proporção diferenciada, surge o ideal socialista na descoberta de um mundo que se deteriora em razão da Segunda Guerra Mundial, marco da decadência capitalista segundo o poeta, e da Ditadura que dominava o Brasil à época de Getúlio Vargas. O livro contempla o momento em que o poeta abandona aquela poesia do cotidiano, toma consciência da nova realidade e preocupa-se em dar um novo papel ao trabalho poético: é preciso usar as palavras para denunciar, para que as pessoas acordem da inércia política, é preciso lutar. E a poesia drummondiana renasce nessa obra com nova postura. Há poemas metalinguísticos que questionam o objetivo poético nesse momento de gravidade no Brasil e no mundo, como também existem os poemas que abordam claramente os acontecimentos desse período, e, por fim, os poemas que abordam o próprio poeta enquanto vida, origem e amigos.

É evidente que as obras foram escolhidas justamente por terem relações entre si, tanto analógicas como distintas. Ao aluno é necessário tranquilidade, domínio emocional acima de tudo, para poder compreender os enunciados das questões e encontrar a resposta certa. Agora é ser fera e mostrar o quanto você se preparou. Bom vestibular!

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